Inaugurando a cobertura crítica do Esquyna Latina, numa parceria com o blog Horizonte da Cena, a jornalista cultural Soraya Belusi apresenta no texto abaixo suas reflexões sobre o espetáculo "A pequenina América e sua avó $ifrada de escrúpulos" do Mayombe Grupo de Teatro, primeiro espetáculo da programação.
Leia também as críticas dos espetáculos "Proibido Retornar" e "La Matanza".
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Foto: Tomás Arthuzzi
Mestiçagem de linguagens – Esquyna Latina I
Por Soraya Belusi (*)
Quando América nasceu, arrancada dos braços de sua mãe África, iniciou sua saga de abandono e exploração ao longo da história. Menina desprotegida, ingênua em seu desconhecimento de si mesma, permitiu-se ser manipulada (e endividada) por sua velha e colonizadora avó. O Mayombe Grupo de Teatro convida o público a testemunhar em "A Pequenina América e Sua Avó $ifrada de Escrúpulos" esta trágica (mas ainda esperançosa) fábula, impregnada de realidade, em um olhar particular sobre a história da América Latina.
As escolhas éticas e estéticas do trabalho parecem refletir, de maneira também estrutural, as opções e pontos de vista ideológicos/artísticos dos integrantes expressos no conteúdo crítico-poético-irônico do texto. Ao escolher a fábula-poética como base da construção da dramaturgia, o grupo abriu para seu próprio discurso e para a encenação uma série de possibilidade de linguagens, em que se permite a coexistência da narrativa e do fluxo de consciência, a presença de momentos mais próximos de uma atuação “realista” a outros mais próximos da performance, a utilização do humor e do autodeboche e o objetivo de provocar reflexão, da inserção de dados históricos a inserção de citações contemporâneas (Nike, Silvio Santos, etc).
A coerência das escolhas parece estar no acúmulo e na sobreposição das possibilidades utilizadas, numa espécie de mestiçagem de linguagens, caótica, porém, potente justamente por pluralidade. Quando reflete sobre o passado, a histórica da construção da identidade latino-americana e, consequentemente, do Brasil, o grupo pretende, simultaneamente, criar um discurso sobre o que vivemos no presente e sobre suas próprias escolhas.
Criando um possível paralelo com as idéias do antropólogo Milton Santos, em seu livro “Por uma Outra Globalização”, a estrutura do espetáculo (misturada, caótica, plural) reflete o que ele chamaria de sociodiversidade, fruto de um novo dinamismo na mistura de pessoas e filosofia, diferente da que se via na primeira metade do século passado, o que, segundo ele poderia ser um indício da possibilidade de uma outra ideia de globalização – expresso na fala final de América, da escolha por seguir seus próprios rumos e desvencilhar-se da sombra de sua avó.
“De fato, se desejamos escapar à crença de que este mundo assim apresentado é verdadeiro, e não queremos admitir a permanência de sua percepção enganosa, devemos considerar a existência de pelo menos três mundos num só. O primeiro seria o mundo tal como nos fazem vê-lo: a globalização como fábula; o segundo seria o mundo tal como ele é: a globalização como perversidade; e o terceiro, o mundo como ele pode ser: o da outra globalização”. (Milton Santos)
Neste sentido, os personagens, mais que terem uma “vida própria”, funcionam como reflexo de comportamentos e identidades, crenças, culturas, modos de pensar (seja quando representam a obsessão do consumo e das finanças do mundo atual, ou a exploração através da venda sexual, ou ainda a necessidade de um povo de confiar na e depositar suas chances de mudança na fé, ou ainda a existência de um pensamento hegemônico (imperialista e dominador) que manipula e assombra, desde a sua “descoberta”, todo um continente.
(*) A jornalista foi convidada a cobrir o evento.